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sexta-feira, 6 de julho de 2012

O primeiro livro de cada uma de minhas vidas


Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha vida. Prefiro falar do primeiro livro de 
cada uma de minhas vidas. Busco na memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar
aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim.
Eu lia e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez; criança quase aprende de cor
e, mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez. A história do patinho
que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e
sim um belo cisne. Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do Patinho
Feio – quem sabe se eu era um cisne?
Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o
impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia
um gênio me diria: “Pede de mim o que quiseres.” Mas, desde então, revelava-se que sou daqueles
que têm que usar os próprios recursos para ter o que querem, quando conseguem.
Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro:
Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já
pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A
menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim
ler aquele livro, fez um jogo de “amanhã venha em casa que eu empresto”. Quando eu ia, com o cora-
ção literalmente batendo de alegria, ela me dizia: “Hoje não posso emprestar, venha amanhã”. Depois
de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para
que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida
notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele
mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas
de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.
Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros
pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Herman Hesse. O título
me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais
deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos
13 aos 14 anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a
viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.
Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que 
abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas
esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a
saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de
sua época: Katherine Mansfield.
                                                 
Publicado originalmente no Jornal do Brasil em 24 de fevereiro de 1973.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. p. 491-492.

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